Luiz Sergio Gonçalves

Naura dos Santos Americano

Este artigo é um brevíssimo aprofundamento de algumas idéias de Carl Rogers relacionando-as com certos fundamentos da mediação de conflitos, principalmente, os característicos do modelo transformativo.

Em seu livro “Tornar-se Pessoa” (p. 22 e 23), Rogers menciona três experiências que vivenciou em seu primeiro emprego como psicólogo no “Child Study Department” da Associação para a Proteção à Infância em Rochester, Nova Iorque.

Ele atendia “crianças delinquentes” e suas famílias, que eram encaminhadas pelos tribunais e serviços sociais, realizando diagnósticos e tratamento.

Rogers menciona um autor que atraia sua atenção, Dr. Willian Healy. Pelo que Rogers descreve, esse autor parecia ter uma fundamentação psicanalítica e seguia os ensinamentos da psicopatologia.

Na primeira experiência Rogers se refere a um adolescente diagnosticado como piromaníaco. Segundo Healy, a delinqüência, muitas vezes, estava relacionada com um conflito sexual. Dentro dessa premissa, ele trabalhou um suposto conflito do adolescente, ligado à masturbação, e depois de um tempo, considerou o conflito resolvido e recomendou sua liberdade condicional. Pouquíssimo tempo depois, o adolescente reincidiu no delito.

A segunda experiência descreve o contato que teve com uma espécie de manual de entrevista, criado por um assistente social que rápida e habilmente conduzia o entrevistado ao centro da dificuldade. E passou a utilizá-lo como um bom exemplo de técnica de entrevistas. Anos depois, pegou esse material para utilizá-lo em uma entrevista, mas desistiu ao tomar consciência de que o instrumento mais parecia um manual de interrogatório.

A terceira experiência refere-se a uma situação em que atendia à mãe de um menino com problemas de comportamento, a quem ela não conseguia dar limites. Ele tentou mostrar para ela que o problema relacionava-se com a rejeição que sentia pelo filho, desde cedo, mas ela não conseguia perceber isso. Após algum tempo sem sucesso, Rogers manifestou sua limitação e sugeriu que encerrassem os atendimentos. A senhora concordou, mas, antes de sair, perguntou se ele também atendia adultos. Ao receber a resposta positiva iniciaram um processo psicoterápico descrito como muito proveitoso.

Sua conclusão:

“Este incidente foi um daqueles que me fizeram sentir o fato – de que só mais tarde me apercebi completamente – de que é o próprio cliente que sabe aquilo que sofre, em que direção se deve ir, quais os problemas que são cruciais, que experiências foram profundamente recalcadas. Comecei a compreender que, para fazer algo mais do que demonstrar a minha própria clarividência e a minha sabedoria, o melhor era deixar ao cliente a direção do movimento no processo terapêutico.” (p. 22 e 23)

Coerente com essa perspectiva de não diretividade, Rogers foi desenvolvendo seu trabalho até formalizar sua teoria em 1957 e 1958 em seu livro “Psicoterapia e Relações Humanas” Vol. I e II, com a co-autoria de Marian Kinget. No volume II eles comentam casos de atendimento psicoterápico e no I realizam a apresentação da teoria, propriamente dita.

O postulado central da teoria é a “Tendência Atualizante” que consiste na concepção de uma capacidade intrínseca de todos os seres vivos, no sentido de desenvolverem-se em interação com o que percebem do meio ambiente que os cerca, e de uma tendência para sempre exercer essa capacidade.

Podemos observar que a introdução do termo “percebem” dá um sentido relativo, subjetivo, individual, fenomenológico, que não deve ser generalizado, ou considerado como um absoluto.

No referido livro, os autores chegam a propor que a tendência atualizante existe nos organismos, enquanto estiverem vivos, confundindo-se, portanto, com o próprio conceito de vida.

Mais tarde Rogers ampliou essa perspectiva, ao analisar trabalhos sobre a formação e a extinção de estrelas, e as concepções de funcionamento do universo. Ele percebeu que a tendência que percebia nos organismos vivos também se aplicava na formação do próprio universo. Propôs o conceito de “Tendência Formativa”.

No início sua proposta foi chamada de “Terapia Não-Diretiva” conhecida como a 1ª fase, caracterizada, a partir do comportamento do terapeuta, por evitar ao máximo as intervenções que poderiam atrapalhar as manifestações da tendência atualizante em seus clientes. O terapeuta procurava limitar-se a repetir frases que considerava importantes no discurso do cliente. Aqui, a atitude predominante no terapeuta é a “Consideração Positiva Incondicional” que consiste em uma perspectiva intimamente relacionada com a tendência atualizante, considerando que o comportamento do cliente é sempre positivo, não no sentido absoluto, mas no sentido de que é o melhor que pode fazer naquele momento, diante das condições que percebe. E essa perspectiva é incondicional, pois o terapeuta não condiciona essa consideração positiva seletivamente, em relação às percepções do cliente.

A 2ª fase configurou-se como “Terapia Centrada no Cliente”. Foi a fase das respostas reflexivas do sentimento do cliente, em que o terapeuta tornou-se um pouco mais livre do que na fase anterior, elaborando mais suas intervenções, parafraseando o discurso do cliente, a fim de identificar seus sentimentos, necessidades e vontades, da exata maneira como se manifestavam. Uma parte dos adeptos das idéias de Rogers permanece nessa fase até hoje, o que dá a dimensão de sua importância. A atitude terapêutica que se evidencia aqui, para complementar a consideração positiva incondicional, é a “Compreensão Empática”, que busca a sintonia de sentimentos com o cliente, para compreender o que ele experimenta, a partir de dentro.

A 3ª fase é a atual, “Abordagem Centrada na Pessoa”, que se caracteriza pela ampliação das aplicações, para além da psicoterapia, pois surgiu com os grandes grupos de encontro, incluindo pessoas, independentemente, da e de formação acadêmica. A figura do terapeuta fica muito mais flexível e entra em cena o facilitador. Aqui o facilitador-terapeuta assume uma variedade de possibilidades de expressões, mostrando à pessoa o que sente em relação ao que é trazido por ela. A atitude adicionada nessa fase é a “Congruência do Terapeuta-Facilitador” que é a percepção por parte desse último, do que está sentindo-percebendo naquele determinado momento de contato psicológico com a pessoa-cliente-facilitado.

Esse desenvolvimento da teoria de Rogers atingiu seu auge nos anos 1970, justamente quando nasce, também nos EUA, a mediação de conflitos, do jeito como a conhecemos.

Marshal Rosemberg foi aluno de Rogers, e sua CNV (Comunicação Não Violenta) utiliza respostas muito parecidas com as que caracterizam a 2ª fase da teoria de seu antigo mestre, embora restrita, buscando refletir os sentimentos que motivam expressões e atitudes violentas, e não aqueles de caráter mais amplo, como os mais sofridos, mais característicos da psicoterapia. Em minha percepção, ao ser introduzida na mediação de conflitos, a CNV trouxe essas atitudes desenvolvidas por Rogers.

Sabemos que o objetivo da psicoterapia é a mudança terapêutica da personalidade, mas Rogers (Tornar-se Pessoa, p. 43) concebia a psicoterapia como um aspecto das relações interpessoais em geral, não diferindo tanto assim entre si. E esse foi o tema que escolheu para abordar no congresso da American Personnel and Guidance Association, de St. Louis, em 1958.

Provavelmente esse foi o caminho para Rogers perceber que os princípios da ACP poderiam ser aplicados em outras áreas, além da psicoterapia, pois facilitam mudanças terapêuticas sem, necessariamente, que as pessoas estejam em um processo terapêutico. E não é difícil imaginar que sua tremenda influência; não somente nos EUA, mas em vários países do mundo, o que facilitou um convite da ONU para que ele e seu staf mediassem as reuniões na Nicarágua entre o governo, apoiado pelos americanos, e os rebeldes sandinistas, que tinham a simpatia dos soviéticos; podem ter influenciado as idéias propostas por Bush e Folger na concepção da Mediação Transformativa.

Percebo na construção dos movimentos do empowerment (empoderamento, revalorização, facilitação do poder pessoal) e do reconhecimento (conceitos da mediação transformativa) elementos das 3 atitudes básicas do facilitador da ACP, fundamentais nesse processo de construção.

Um princípio geral da mediação, mas que recebe ênfase especial no modelo transformativo, é o protagonismo das pessoas mediadas, que controlam o conteúdo que trazem, que devem deter o poder do discurso e dos sentimentos, a fim de que a construção dos rumos do processo, para o acordo ou não, seja um reflexo do discurso de ambas.

Tal concepção enraíza-se nos princípios existencialistas-fenomenológicos que propõem o homem como construtor permanente de sua própria existência, com liberdade e responsabilidade. Esses também são fundamentos da tendência atualizante.

Um instrumento muito eficiente e eficaz para a facilitação do empoderamento é a pergunta aberta, pois proporciona a revisão de conceitos, novas perspectivas que antes não eram percebidas, ou seja, possibilidade de mudança. Quando percebo algo novo, de uma nova maneira, portanto, diferentemente do que antes, mudei algo nesse processo de percepção e concepção, que pode estar ligado a muitos pontos importantes, fundamentais no funcionamento de minha personalidade.

Esse é o princípio da compreensão empática, cujo ponto máximo de empatia não é condição essencial para a facilitação do aprofundamento rumo aos conteúdos que precisam ser mudados. Antes disso, a própria e simples busca dessa compreensão por parte do mediador-facilitador já é a melhor forma de demonstrar ao mediado que ele, mediador, experimenta a consideração positiva incondicional por ele, mediado, ou seja, demonstra que se interessa por ele, pelo que ele percebe e como percebe.

Um dos pontos fundamentais da mediação é a credibilidade do processo. Muitos aspectos sustentam esse fator, mas a transparência do mediador é um dos mais importantes, pois, pavimenta uma estrada de segurança para que os mediados também possam transitar com confiança. Essa é a proposta da congruência do terapeuta-facilitador.

Finalizando, acredito que esse movimento de empoderamento, associado às características da mediação transformativa, facilita o caminho para o reconhecimento do outro, uma vez que, no fundo, a valorização anterior é que fundamentava a percepção desse outro. Esse processo é muito semelhante à busca da compreensão empática, proposta por Rogers, que facilita na pessoa a percepção de experiências que até então não estavam completas, pois não eram nomeadas, mas, ao serem, permitem uma vivência plena do seu poder pessoal.  

REFERÊNCIAS

 

BUSH, Robert A. B.  e FOLGER, Joseph P.-La Promesa de la Mediación – Editora Granica

ROGERS, Carl Ransom. Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

ROGERS, Carl Ranson, e Kinget, Marian G. Psicoterapia e relações Humanas, vol. I, 2ª edição. Belo Horizonte: Interlivros, 1977.

ROGERS, Carl Ranson, Um Jeito de Ser. São Paulo: EPU, 1983.

ROSEMBERG, Marshall B. – COMUNICAÇÃO NÃO-VIOLENTA

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